164. Vejo Mafalda saltando da página, chorando na despedida do criador, que a abraça sorrindo e diz em seu ouvido: no llorás, mi piba, vos sos Gardel, che!
163. Tem sol, a pracinha tá vazia! A mãe não escuta, só fala do bicho papão que agora tem até nome. Na escolinha tem egoísta que não empresta lápis ou brinquedo. Mas ninguém quer ser dono da rua sozinho!
162. Irriga o pequeno jardim, escutando notícias no rádio. Heranças do pai: o molhar o jardim, o escutar notícias e o próprio rádio. Chora ao ouvir sobre os manguezais e as restingas. Sabe que o pai também choraria.
160. Leme: determina a direção da viagem, de forma responsável e exata. Frias: classifica as mulheres sem desejo sexual, em linguagem grotesca e machista. Cada um tem o sobrenome que merece.
159. N oite de estreia. Recorda o palco, os olhares, a energia da plateia. A noite em que tocou no giz como se baqueta fosse. Hoje lamenta ser do país, onde quem deveria orquestrar, despreza a melodia.
157. N o nascer da primavera, enquanto a árvore florida estende seus galhos para alcançar o índio em um abraço; o homem branco, que nada sabe sobre árvore, índio e abraço, cospe mentira sobre os três.
156. Combinou com a vó chamada de vídeo para olharem juntos o céu bem de cima. Ela na sacada, ele no alto da árvore. A vista era bonita, mas faltava o bolo de chocolate.
153. Diante do salário parcelado, do trabalho extenuante, pensa em abandonar. Mas lembra: "Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo". E renasce das cinzas.
151. Quando começou a chover abriu o microfone: "Profe, cuida para não molhar tua casa com a chuva". E com o dedo bem esticado: "olha, ali ó, tem que cuidar!"
150. Terminou a aula. Ele esqueceu a câmera ligada sem querer. Ela não desligou e ficou espiando. Sempre gostou do Lucas, mas nunca pensou que ele fosse assim tão esperto. Já sabia até cortar as unhas dos pés!
149. Era setembro quando se encontraram para comemorar os aniversários do mês, com um abraço e um café no Brasilero. Liam "As veias abertas da América Latina", pensando que um dia elas iriam fechar.
147. A cada nova despedida, enxerga o bebê precoce para o caminhar e para o soltar sua mão. Ela, que desconhecia o andar só, gerou um livre peregrino solitário.
146. A professora pediu para ligarem as câmeras. Abriu um sorriso ao ver a Carol. Fez um print. Passou o dia encantado. Noite de plenilúnio. Olhou pro céu e pra tela. No olhar da paixão infantil, a Carol era parecida, branca e redonda, mas muito mais bela que a Lua.
143. No dia em que juntou as letras e pronunciou em voz alta a primeira palavra, o neto tinha esquecido um trabalho na mesa da sala. Repetiu tão alto universidade que acordou o orgulho do filho adormecido.
142. Na infância aprendeu a contar até três para se controlar. Quando ele quis fazer a festa nela sem convite, lembrou. Quando a polícia chegou, encontrou o cadáver com três balas no peito.
141. Um sete de setembro distante, desfilou por nação imaginária. Quando soube da ilusão, quis um país real. Brasileiro bom não desiste, é munido de utopia e de resiliência, não de armamento ou de ódio como cidadão de bem. Hoje não viu desfile virtual. Bateu panelas.
140. Atribuiu a pimenta no molho, a agressividade picante. Queria doçura, passou a usar canela. Não resolveu. Começou a usar chá de camomila, enquanto o Acônito crescia no jardim.
139. Poderiam ser origamis. Pássaros a alçar vôo, flores a exalar perfume. Porém, sobre a mesa, papéis seguem chegando e sendo empilhados. Exalam o fedor da corrupção. E o dono da mesa só sente o cheiro do dinheiro recebido para enjaular papéis.
138. A saudade é um arco íris que transformo em tapete. Invento um longo e colorido caminho. Beijo minha mão e assopro forte que alcance o rosto, do sempre presente, apesar de distante, meu amor primeiro.
137. Campainha. Saudação distante e desculpa pelo barulho da mudança. "Tudo bem, sem problemas". Inscrita em dois cursos, desenho e dança, cada dia o vizinho ganha um novo rosto para dançar com ela, colado no cabo da vassoura.
136. A mãe sempre sonhou com o filho modelo. Passou o tempo e ela morreu, igual a muitos no reino devastado. O sucesso demorou tanto, que o encontrou igual ao reino. E assim está ele agora, curvado e triste, a estampar a nota de duzentos reais.
135. Fecha a janela, despede-se do vento de agosto que não trouxe vacina, nem ministro da saúde. Esfrega as mãos lambuzadas de álcool gel, enquanto espera a visita daquela que chegará com o sol. No único vaso da casa, germina uma primeira flor.