41. Dia de arrumar estante: reencontrar personagens, relembrar histórias, acariciar capas como rostos de filhos distantes. A prateleira dos não lidos como o arco-íris encantou o entardecer de sábado.
37. O capitão, obcecado por orifícios, de tanto olhar para o próprio umbigo e para os dos filhos, quando se tornou presidente, enfiava cada vez mais o povo no buraco ou no buraco do povo.
36. Chovia forte q uando recebeu a marmita do menino. Arregalou os olhos, estendeu as mãos e agarrou os talheres feito remos. Como em outra margem do rio, sentou-se embaixo do viaduto, afogando-se no muito obrigado com a primeira garfada do feijão.
34. Clamam por patriotismo, sem entender a letra do hino nacional; por Deus, homenageando torturador; por paz, ordenando armamento. Em Brasília, a bandeira está estática, parece cabisbaixa. Se tivesse voz, ela gritaria: “Ordem e Progresso!”
33. No convívio diário, sentiu o cheiro da ignorância proveniente de sua fala, percebeu a contaminação e o motivo para o silêncio dos amigos. A aliança ficará na pia do banheiro.
32. Tenta escrever o nome na sopa de letrinhas. Busca a palavra exemplar no teclado do computador. A linguagem colorida e livre feito borboleta a fascinar para sempre.
31. Dormiu com os braços enlaçando o próprio corpo, sonhou com o abraço dela. Despertou com o canto dos pássaros, preparou o café da manhã, assoviando.
29. Conseguiu uma floricultura com tele-entrega e comprou dez vasos. O apartamento de um dormitório ganhou jardim; ele cheirando as flores, colibri sem asas.
27. Encontrou o velho casaco no armário. O tricô fez lembrar das mãos que o teceram. Vestiu, sentindo um abraço. Encontrou as agulhas no fundo da gaveta, junto com os novelos de lã de invernos distantes. Colocou os pontos, guiada pela voz memória do afeto.
25. Descobri que eu não sou adotado que nem meu primo diz, porque meu pai e minha mãe também não acertam as perguntas sobre os textos. Só gostam de ficar no celular, igualzinho a mim. Agora terminei o tema, vou pro parque, não uso máscara, porque isto daí é só uma gripezinha .
23. Sábado em Brasília: no hospital morrem pessoas comuns, no jet sky passeiam autoridades nacionais. Ao longe, a estátua da Justiça complementa a cena.
20. Quando percebeu que a saudade não cabia dentro dos porta-retratos espalhados pela casa, resolveu procurar o álbum de fotos esquecido em algum canto no armário.
19. Um só olhava a filha para fotos a serem postadas nas redes sociais junto com o eu te amo. O outro recolocava o cobertor caído sobre o corpo encolhido da filha nas noites de inverno, nunca precisou falar de amor.
17. A dispensa sem o pagamento semanal foi a decisão do condomínio onde trabalho como jardineiro. Olho a roseira da minha casa: eu deveria ter plantado flores comestíveis!
14. Deu um zoom na nudez vizinha, mordeu o lábio inferior, sorriu, tirou camisa, calça, cueca, levantou do sofá cantando e dançando “eu tô morando num pedaço do céu como o diabo gosta”. Chamada de vídeo ou nudes?
11. Eu, grandiosa em fase mais cintilante, hoje pareço um acessório a iluminar sax e poema projetado. Aprecio o aceno da mulher ao músico e o beijo do poeta dirigido a ela. O brinde em minha direção e o sorriso sem destino da mulher fascinam.
10. Ao tocar sax, ouço muitos aplausos, vejo muitos sorrisos, leio o poema projetado. Nem a Lua cheia me ilumina mais do que o aceno da mulher na sacada ao lado.
9. Projetou poema ao som do sax vindo da sacada, jogou um beijo para a bela do quinto andar que erguia a taça e, brindando com a Lua, sorriu. Nunca uma noite parecera tão iluminada para o poeta.
8. Maquiada, escovada, tubinho preto de paetê, sandálias douradas, drinque na taça de cristal, acenou ao saxofonista da sacada ao lado, leu o poema projetado. Sentiu o sabor do beijo jogado pelo vizinho poeta. Contemplou a lua cheia, ergueu a taça, bebeu um gole e sorriu.
7. Das máscaras: de purpurina para o carnavalesco, de meia para o assaltante, de cirurgia para o médico, de tecido para o sensato, de super herói para o juiz, de cidadão de bem para o presidente, de visão de raio x para os que não enxergam as máscaras dos dois últimos.
6. Ela estava sentada na poltrona da sala, em frente à televisão, tão atenta aos números de mortos pela epidemia, que nem viu quando o marido se enforcou no quarto.
5. O juiz patriota foi chamado de herói pelos cidadãos de bem, cresceu, corrompeu-se, virou ministro. A cada ano o ego dele inflava mais, inflou tanto que explodiu. Pareceu que a explosão exalou um odor desagradável.
2. Cada um com a sua batida: o estudante no liquidificador, o policial no morro, o solitário na punheta, o pedreiro no martelo, o músico no tambor, o cidadão de bem na mulher, o lúcido na panela.